sábado, 18 de abril de 2020


A Religião no Trono

Algo tem me inquietado muito nestes últimos dias. Sou cristão desde 1988, quando fiz minha profissão de fé, e desses dias até aqui foram muitas as aberrações “teológicas” que vivenciei, como: surgimento de dentes de ouro durante cultos de oração; “pastores” derrubando fieis com o toque do paletó; cultos de gargalhadas “santas”; o voto de raspar a cabeça, feito pela “apostola” Valnice Milhomens; a teologia relacional do Ricardo Gondim; surgimento de grandes igrejas-empresas; mas nada se demostrou tão terrível que a comprovação do poder político de alguns líderes protestantes, que têm sua maior representação na figura do autointitulado, “bispo” Macedo. Este, outrora execrado pela maioria dos demais líderes, parece ter conseguido uma adesão em massa aos seus ideais sacerdotalistas, em que o “Brasil para Cristo” depende de uma ação política, quando “sacerdotes” representantes do “povo de Deus” assumem o poder, levando seus adeptos a uma consciência insana de polarização, em que, pensamentos contrários são taxados de reacionários, esquerdistas, comunistas. Tal sacerdotalismo é um verdadeiro aviltamento do conceito bíblico de sacerdócio, pois do ponto de vista cristão, o sacerdócio é individual, partindo do indivíduo regenerado para o todo, gerando vida pela pregação: “E, chegando-vos para ele, pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo”. 1 Pedro 2:4,5.
Esse afã dos religiosos por poder me fez viajar um pouco pela história da religião e se conclui que sempre que houve aliança entre religião e estado, os resultados foram desastrosos. O que acontece nessas alianças talvez seja um sentimento de saudosismo ao estado judeu (já perceberam a fixação que tais religiosos têm pelo estado de Israel), em que a fé mosaica não era simplesmente a religião do estado: ela era, pelo menos até o início da monarquia, o próprio estado. A religião monoteísta de Iavé, com as suas numerosas leis e instituições, regulava todos os aspectos da vida dos israelitas, individuais e coletivos. É bom entender “Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo”. Colossenses 2:17. O governo teocrático mosaico é um tipo de Cristo. Ele é o sumo sacerdote e o seu reino é espiritual. Na Roma imperial, o imperador era também sumo sacerdote da religião do estado. Por interesses políticos, César Augusto ordenou a restauração dos templos e do antigo culto aos deuses. Ele também iniciou a verdadeira religião da Roma pré-cristã: o culto ao imperador. O cristianismo surgiu nesse contexto. Em uma relação tensa entre os judeus e o Império Romano. Jesus ensinou claramente o princípio da separação entre os dois reinos com a declaração: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” Mateus 22: 21. No seu nascimento e na sua morte, Jesus experimentou a ira dos poderes constituídos, porém o seu maior conflito foi com o sistema religioso, não com o sistema político: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia”. Mateus 23: 27. São esses mesmos hipócritas que desejam sentar-se no trono do Planalto e governar um Brasil para Cristo, sem regeneração, sem vida cristã, embriagados pelo poder. Isso é muito característico aos princípios de um governo anticristo, muito bem descrito em Apocalipses, dentro da visão do “já” e do “ainda não”. O compromisso maior dos cristãos é com Cristo, o Senhor: “E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai”. A sua verdadeira pátria está nos céus: “Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,” Filipenses 3: 20. Isso relativiza a importância do estado e de todas as instituições humanas. Dá para compreender o desejo ao poder político de Macedo e seus comparsas, entronando um bobo da corte?
No terceiro século da era cristã, Constantino declarou-se cristão por atribuir sua vitória em uma batalha à ajuda do Deus dos Cristãos. Começou o engano que resultou no surgimento da igreja romana, quando “cristãos” despertaram para o fato de que a causa de Roma e a causa de Cristo haviam se tornado uma só. Constantino havia se tornado o pontifex maximus. Ele e seus sucessores também afetaram a vida da igreja, fazendo grandes concessões a si mesmos e aos seus líderes, ao mesmo tempo em que reprimiam o paganismo (pura hipocrisia). As décadas seguintes viram as constantes ingerências de Constantino e dos seus filhos nos assuntos internos da igreja (qualquer semelhança é mera coincidência) e a igreja iniciou a prática de recorrer às autoridades civis para impor as suas decisões. “Para vos envergonhar o digo. Não há, pois, entre vós sábios, nem mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos? Mas o irmão vai a juízo com o irmão, e isto perante infiéis”. 1 Coríntios 6:5, 6.
A reforma protestante surge por causa da cumplicidade entre estado e igreja, danosa para a vida moral e espiritual da cristandade. Ela rompeu em muitos países a aliança entre estado e igreja católica, mas inferiram no mesmo erro, surgindo várias igrejas estatais. A igreja da Inglaterra acreditava que “não havia nenhum membro da Comunidade que também não o fosse da Igreja da Inglaterra”. Ainda que Calvino procurasse fazer uma clara distinção entre as esferas de ação da igreja e do estado, em Genebra, a implantação da Reforma teve uma forte conotação política. A Igreja Reformada de Genebra era uma igreja estatal e durante a maior parte do seu ministério, Calvino teve sérias dificuldades com as autoridades civis. Os anabatistas e outros reformadores insistiram, a partir do seu entendimento das Escrituras e das suas próprias experiências, na necessidade da completa separação entre a igreja e o estado. A sua posição pareceu tão anárquica naquela época que eles foram duramente perseguidos por todos os outros grupos, protestantes e católicos. As disputas territoriais entre luteranos e católicos resultaram num período de guerras que terminou em 1555 com a Paz de Augsburgo, que deu legalidade ao luteranismo. A tentativa de um grupo anabatista radical de implantar uma teocracia na cidade de Münster, resultou em violência e mortandade (1532-35). Tudo isso foi consequência de pensamentos sacerdotalistas que a “igreja” protestante brasileira parece almejar.
O mais estranho é acreditar que um ímpio seja o instrumento de Deus para a concretização desse plano de aliança entre igreja e estado. É obvio que não podemos negar a soberania de Deus em determinar a eleição do ímpio. São muitos exemplos na história bíblica. Um desses exemplos mostra claramente que às vezes Deus colocará líderes terríveis em posições de grande poder com o claro propósito de realizar seus planos. Certamente, isso ocorreu com o faraó do êxodo, cujo coração Deus endureceu uma e outra vez até o Egito ser humilhado por tratar mal Seu povo, Israel. Deus enviou Moisés para dizer a Faraó: “Mas, na verdade, para isso te hei mantido com vida, para te mostrar o Meu poder, e para que o Meu nome seja anunciado em toda a terra” Êxodo 9: 16. Deus está diretamente envolvido na escolha de indivíduos a posições muito proeminentes. Ele inspirou o profeta Isaías a anunciar, com antecedência, a ascensão de Ciro, o Grande, ao poder para cumprir Seu propósito: “Assim diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão”. Isaías 45:1. E um século e meio depois, Deus colocou Ciro sobre o Império Persa. Noutra ocasião, Daniel declarou: “Falou Daniel, dizendo: Seja bendito o nome de Deus de eternidade a eternidade, porque dele são a sabedoria e a força; E ele muda os tempos e as estações; ele remove os reis e estabelece os reis; ele dá sabedoria aos sábios e conhecimento aos entendidos”. Daniel 2: 20, 21. O apóstolo Paulo, aos cristãos que viviam na capital do Império Romano, escreveu: “Nenhuma autoridade existe sem a permissão de Deus, e as que existem foram colocadas nos seus lugares por ele”. Romanos 13: 1. O próprio Senhor afirma que a ascensão de Pilatos ao poder foi determinação divina: “Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado; mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem”. João 19:10,11. Então, isso significa que Deus determina ascensão ao poder de qualquer líder com todas as suas falhas e fraquezas. Significando que Deus tem um propósito para a humanidade, um propósito para os eventos atuais, e Ele realizará esse propósito através da liderança que Ele colocar naquela posição, não os inocentando de suas responsabilidades. São duas doutrinas que só se encontrarão na glória, Soberania Divina e Responsabilidade Humana. Embora as Escrituras mostrem que é Deus realmente decide quem será o governante oficial de uma nação, também permite que as pessoas escolham governantes que não compactuam dos valores ensinados nas Sagradas Escrituras. A decisão de Deus quanto a ímpios no poder, não inocenta a impiedade deste, nem a má escolha do povo. Em certa ocasião, Ele criticou Seu antigo povo escolhido com estas palavras: “Israel rejeitou o bem; o inimigo persegui-lo-á. Eles fizeram reis, mas não por mim; constituíram príncipes, mas eu não o soube; da sua prata e do seu ouro fizeram ídolos para si, para serem destruídos”. Oséias 8: 3, 4. Isso não é contradição. É a relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana. São as Escrituras mostrando suas duas óticas, a que se direciona dos céus ao novo homem e a que se dirige do novo homem aos céus. “Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”. Filipenses 2: 13. É Ele quem opera o querer no cristão e este continua sendo volitivo. O apóstolo Paulo dá este excelente conselho aos cristãos que questionam o que pensar e fazer quanto aos seus governantes: “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações de graças, por todos os homens; Pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade”. 1 Timóteo 2:1,2. Não significando que devem fechar os olhos às suas iniquidades, tampouco suas bocas para denunciar seus pecados e anunciar o arrependimento em Cristo Jesus. Oremos pela regeneração dos governantes e que não enveredem pelas veredas da religião, do sacerdotalismo.

Francisco Fernandes
18 de abril de 2020


Referências bibliográficas:
https://cpaj.mackenzie.br/historia-da-igreja/igreja-e-estado-uma-visao-panoramica/
http://ideiadereflexao.blogspot.com/2012/07/sacerdotalismo-evangelico.html
https://portugues.ucg.org/revista-boa-nova/deus-e-quem-escolhe-os-governantes-das-nacoes

Um comentário:

  1. Quanta sabedoria em tantos versos bíblicos, uma pena que hoje em dia os "donos" das igrejas a manipulam de tal forma que todo o propósito inicial se desmanchou. Uma pergunta: aqui no Brasil estamos partindo para uma República do Evangelistão?
    Abraço!

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