sexta-feira, 17 de abril de 2020



Meus velórios

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Assim Machado de Assis faz a dedicatória do seu clássico romance, Memórias póstumas de Brás Cuba. Achava totalmente bizarra a expressão do literato, como também o fato de alguém poder narrar sua própria vida depois de morto, até que tive que morrer para perceber que fui ao meu próprio velório. É! Fui ao meu próprio velório. Morri no dia 27 de março de 2020, em meio a uma terrível pandemia. A crise do Novo Corona Vírus. Decretos governamentais determinavam o isolamento social para conter o horrível poder de contaminação da peste. Naquele terrível dia sombrio, às 15h da tarde parti do mundo dos viventes e poucas horas depois tive que ser sepultado, aproximadamente às 19h. Não tive velório porque as leis de contenção do vírus proibiam qualquer tipo de aglomeração. Poucas pessoas estavam comigo naquela última despedida. Apenas poucos familiares e alguns amigos, levando em conta a minha grande popularidade na cidade que me acolheu como cidadão, Jaguaribe. Urbe não menos amada que minha querida terra natal, Icó, e Orós, onde comecei a construir minha família. Mas não fiquei triste, pois a presença na minha própria sentinela se fez quando, no decorrer de muitos anos fui um assíduo frequentador de velórios. Quando participava das preces feitas naqueles mórbidos momentos, era como se tivesse realizando-as a mim mesmo. Ao observar um jovem senhor triste, que chorava ao lado de uma urna funerária, era como se tivesse vendo Zé meu, despedindo-se do seu querido e velho pai. Aquelas mulheres fortes e aguerridas, que consolavam sua velha mãe, sentada em uma cadeira de balanços eram como se fossem Neném e Eneida Regina, afagando minha amada Socorro. Os velórios mais marcantes eram aqueles em que o finado se acompanhava de uma grande prole. Via-me rodeado, não somente dos que saíram das minhas entranhas, mas de todos os que a vida me deu o prazer de acolhê-los; Zefinha, a primogênita Rafaele, a caçula; e todos os muitos que compõem minha progênie. Afinal, a Palavra de Deus afirma que bem-aventurado é o homem que enche de filhos a sua aljava. E Derblin, meu caçula? O via naqueles jovens órfãos de pai, que não se consolavam com a grande perda do seu patriarca. O clímax dos meus velórios era quando o féretro saia rua a fora, carregados por filhos, genros, netos, bisnetos e os verdadeiros amigos, passavam pelo comercio da cidade, na rua principal onde trabalhei por muitos anos com a minha saudosa Loja Padre Cícero e recebia a homenagem dos comerciantes ao baixarem as portas de suas lojas. Esse tributo também era meu! Receber os punhados de terra, terra molhada, pois não há morte melhor do que aquela que acontece num inverno farto. É uma das melhores dádivas a um velho sertanejo. Quantas e quantas vezes tive que acompanhar, debaixo de chuva, os meus muitos velórios? O pó que cobre meu corpo neste momento tem o cheiro de chuva, de mormaço, sonho de todo cearense. Ocasião que me faz reviver o olor da poeira da futura Brasília que ajudava a construir como candango e a cor avermelhada do pó que manchava minha pele ressequida, ao auxiliar na construção do meu velho açude do Orós. Areia, poeira, pó. Voltei ao pó, como do pó eu vim, mas volto feliz por causa dos meus muitos velórios.
Eli França Landim

Por Francisco Fernandes
Jaguaribe 27 de março de 2020

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