sábado, 24 de junho de 2017


Estocolmo

Estocolmo é a maior cidade da Suécia e a sede de seu governo. Figura como uma das cidades mais visitadas dos países nórdicos, com mais de um milhão de turistas internacionais por ano.  É citada como uma das cidades mais desejadas para habitação do mundo, por ser limpa, organizada e segura.
A famosa e bela cidade sueca dá nome a uma síndrome um tanto curiosa, Síndrome de Estocolmo. Recebe a designação por causa de um assalto ocorrido em um banco do seu centro comercial que durou de 23 a 28 de agosto de 1973. O curioso dessa ação criminosa é que não foram os requintes de crueldade ou os traumas pós-crime que a marcaram no cenário internacional, mas em as vítimas continuarem a defender seus raptores, inclusive nos processos judiciais que se seguiram.
A síndrome de Estocolmo é um estado psicológico em que uma vítima, submetida a um longo tempo de sequestro, passa a ter sentimentos de amor, de paixão, a seu sequestrador. Confesso aos meus leitores que sofro desse distúrbio psicológico, pois fui vítima de um sequestro e, de forma inexplicável, apaixonei-me pela minha algoz, minha sequestradora. É incrível como se pode gostar tanto de alguém que nos aprisiona, nos castiga, nos sufoca. Sou deverasmente alucinado por ela. Digo que vou esquecê-la, que vou tentar ocupar meu coração com algo mais rentável, que me valorize mais, que não me sufoque tanto, mas há sempre uma recaída, e vocês sabem que depois da briga a reconciliação é de um sabor indescritível, pois são nesses momentos de prazer que se olvida do descaso, da desvalorização, do desrespeito, das injustiças. Paixão é paixão!
Esse relacionamento conturbado, cheio de encontros e desencontros, se bem que ultimamente tem ocorrido muito mais desencontros, tem nos proporcionado muitos rebentos. São muitos os nossos frutos! Triste é quando se descobre que muitos de nossos filhos herdam as características negativa da sequestradora. São vitimados pelo descaso e falta de investimento no parceiro, em mim, para que proporcione melhores condições de serem cidadãos educados; investimento na nossa casa, para que eles tenham conforto, ambiente adequado para aprendizagem e para que se sintam com vontade de ficar, de não evadir. Não sei o que ela faz com tanto dinheiro! Acho que gasta com amantes, pois o dinheiro que consegue, vai ficando em outras atividades, certamente ilícitas, e quando chega aqui em casa, é uma merreca!
Mesmo com todos esses problemas que nos assolam desde sempre, tenho uns lampejos de alegria, de prazer, de dever cumprido; pois alguns de nossos frutos conseguem abstrair conhecimentos, transcender os obstáculos do descuro, da omissão, da negligência; alçar voos mais altos, tornando-se verdadeiros cidadãos. Acredito que é o que me mantem preso à minha sequestradora.
Às vezes penso que se não tivesse ido, quando ainda fazia faculdade, para aquele estágio obrigatório de Língua portuguesa, não teria sido sequestrado. Foi ali, naquela escola de Ensino Médio que ela prendeu meu coração, escravizou minha mente, seduziu-me por inteiro e até hoje me mantem cativo de seus encantos e confiante na sua reabilitação, na sua mudança. Continuamos aqui, eu e nossos filhos, esperando a sua transformação, bradando pelo seu verdadeiro amor. Meu nome é Professor.

Fortaleza, 24 de junho de 2017

Francisco Fernandes

sábado, 17 de junho de 2017

Do outro Lado

Deaf, até aproximadamente sete anos de idade, vivia em total silêncio, em que a possibilidade de comunicação era zero. Só conhecia a escuridão da noite e a luz do dia, e não sabia distinguir o que era passado ou futuro. Vivia em seu próprio isolamento e não entendia como as crianças da sua aldeia, da sua mesma idade, dirigindo-se umas às outras, conseguiam realizar as mesma ações, ser compreendidas. Brincavam nas matas; subiam nas árvores; criavam suas próprias regras, nas brincadeiras de grupo; gozavam da liberdade, segurança e tranquilidade daquele agradável reino. Para Deaf restava somente umas imagens distantes em seu subconsciente e muitas vezes sonhava com um mundo em que todos viviam harmoniosamente, e comunicavam-se através de sinais que envolviam a configuração das mãos, pontos de articulação, movimentos, direções e expressões facial/corporal. Tudo isso era muito nostálgico para ele, pois, mesmo sem ter noções de conceitos de sentimentos, era como se sentisse saudades daquele paraíso.
Naquele lugar apresentado no inconsciente imaginário do garoto, todos possuíam visão, olfato, paladar e tato. Não fazia falta um quinto sentido. Eram felizes e a comunicação entre eles era perfeita, pois tinham rapidez e naturalidade na exposição de seus sentimentos, desejos e necessidades. Tinham pensamento e cognição estruturados e eram fluentes na interação social. Não sabia como, mas Deaf anelava desesperadamente por essa dimensão onírica.
Um imenso lago separava os dois reinos. Do outro lado viviam aqueles que, não sabendo porquê, estavam marcados na memória do menino. Um povo diferente, de linguagem distinta, mas sem nenhum problema de comunicação. Era, terminantemente, proibida a entrada no lago, pois suas águas continham uma substância que apagava completamente a memória de quem mergulhasse em suas águas e os transportava para um lugar, até então, desconhecido.
Uma daquelas crianças, com ímpeto de curiosidade, mergulhou naquele lago. A consequência foi que, sem saber como, sem nenhuma lembrança e totalmente destituído de audição; surgiu como um indigente naquela aldeia. Mesmo vislumbrando alguns lampejos daquele saudoso mundo, era totalmente relegado de tudo e de todos, restando-lhe somente a caridade das boas pessoas, que lhe davam alimento, roupa e um cantinho para dormir. Vivia das vagas lembranças de seu reino, sem saber, sequer, da sua existência.
Em um belo dia de sol, passeando a esmo pelos campos daquela terra tão aprazível, teve uma visão extraordinária! Observou um grupo de jovens que se comunicavam através de sinais. Seriam eles habitantes daquele mundo que tão constantemente surgia em seus sonhos? Eram alegres e não emitindo som algum, mostravam não precisar de mais nada para serem iguais a qualquer outro. O garoto, que pensava ser único no mundo, encontrou seus pares e não teve dúvida alguma da semelhança que tinha com eles, exceto na utilização daquilo que não era simplesmente mímica ou gestos soltos, mas uma língua que possibilitava seus usuários a discutir filosofia ou política, a produzir poemas, a expressar sentimentos etc.
É característico do homem, desbravar novos mundos, enfrentar novas aventuras, abandonar o senso comum. Vez ou outra os habitantes do outro lado enfrentavam aquela travessia no afã de novas descobertas e surgiam em um lugar onde eram estimulados a ver o mundo de uma forma totalmente diferente da ótica de mundo dos ouvintes. Deaf não sabia como seus novos colegas haviam resgatado aquela forma de comunicação contemplada em seus sonhos e prófugas lembranças, mas tinha a certeza de que era exatamente aquilo que lhe faltava. Agora poderia se comunicar claramente; desenvolver-se social, emocional e intelectualmente; interagir e compartilhar mensagens, ideias, emoções e sentimentos; e influenciar, inclusive os aldeões ouvintes, a aprender o novo idioma.
Deaf descobriu que o motivo da sua travessia era provar que os mundos não podem ser divididos pela falta de audição, mas unidos pela possibilidade da comunicação, da interação, da inclusão.

Texto oferecido aos meus colegas surdos e aos incansáveis colegas intérpretes da LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).

Jaguaribe 17 de junho de 2017

Francisco Fernandes

domingo, 11 de junho de 2017

A Terceira Margem do Rio

A Terceira Margem do Rio é o título de um belíssimo conto de João Guimarães Rosa, que nos foi apresentado em uma formação para professores de Língua Portuguesa. Guimarães Rosa é um dos autores de ficção experimental da terceira geração do Modernismo. Sua obra é extremamente original, principalmente pelo uso de neologismo, que é a arte de inventar palavras, e pela linguagem popular que modificou radicalmente o regionalismo na literatura.  
No conto, o narrador apresenta-nos um pai de três filhos, sendo dois meninos e uma menina. O pai é uma pessoa quieta e tranquila, cumpre seus deveres sempre trabalhando honestamente, mas um dia resolve construir uma canoa e adentrar ao rio, ficando ali, porém distante das margens. Vive por anos naquela canoa, longe da família, isolado de tudo e de todos. No início o filho leva comida para a margens e ele se alimenta dela, sem sair da canoa. Com o tempo os filhos vão casando, a esposa vai morar na cidade com uma filha e o filho mais velho, ainda solteiro, resolve ficar na fazenda para cuidar do pai. Depois de muitos anos o filho decide substituí-lo no seu autoexílio, mas quando vê a imagem do pai deteriorada pelas intempéries dos longos dias de sol, chuva, desgaste físico etc., foge e adoece consumido por um grande remorso.
São muitas as interpretações feitas a esse conto. Uns o decifram pelo viés da religião, outros da psicologia, do existencialismo. Gostaríamos de analisá-lo da forma mais simples possível, pois observamos que em alguns contextos nos mantemos nessa terceira margem, principalmente quando notamos o quanto são melindrosos os relacionamentos. Alguns chamam isso de covardia, de falta de personalidade, mas preferimos descrevê-lo como um desejo de amizade, cumplicidade; principalmente quando se trata de um grupo de colegas de uma mesma instituição. Há aquela opinião de que futebol, política e religião não se discute, mas alguns acreditam que se pode debater de tudo, respeitando as ideias e não conduzindo-as para o lado pessoal.
Em todos os lugares há sempre, no mínimo, dois grupos.  Na política há os de direita e os de esquerda. Triste é quando, no clímax da discussão, se tenta denegrir o caráter dos simpatizantes de um deles. Na religião há os conservadores e os liberais. Deprimente é quando não se encontra o amor pregado por ambos, devido ao calor das controvérsias teológicas. Na profissão há sempre aqueles que manifestam um enorme desejo de reconhecimento e o impõe de forma exacerbada ou acham que são melhores que os outros, não esperando o reconhecimento chegar a bom tempo. Na Educação prega-se a tão desejada gestão democrática, mas parece que gestores e geridos estão sempre em pé de guerra. Alguns, não muito dados ao debate, preferem tomar sua canoa e manter-se no leito de um rio de frugalidade, à terceira margem. Quem sofre a consequência disso?
As redes sociais têm sido um verdadeiro ambiente de proliferação de malcriações, xingamentos, humor negro e tudo que, em uma sociedade madura, se discutiria somente com solidez de argumentos. Já paramos para pensar no motivo que levou aquele pai para a terceira margem do rio? Será que não havia “enchido o saco” com as incompreensões da família, as cobranças que lhe eram imputadas? Margem direita, margem esquerda ou terceira margem? Céu, inferno ou purgatório? Neste “mundão de meu Deus”, será que há lugar para se viver com suas próprias ideologias?

Francisco Fernandes
Fortaleza, 11 de junho de 2017

domingo, 4 de junho de 2017

Matutar com a cabeça

Matutar com a cabeça parece ser redundante, mas se analisarmos o contexto em que a expressão foi aplicada, veremos que faz um grande sentido.
Matutar significa refletir sobre alguma coisa de maneira demorada, pensar. Etimologicamente origina-se da palavra matuto, provavelmente referindo-se a sua sabedoria informal, conhecimento de mundo.
Nas avaliações do primeiro bimestre deste ano, fiquei na responsabilidade de aplicar as provas de matemática a uma determinada turma de alunos fora de faixa etária. A professora da referida disciplina determinou que os alunos não deveriam utilizar calculadora, inclusive dos celulares. Com um olhar perscrutador, característicos dos exímios aplicadores, observei um movimento curioso de um dos alunos avaliados. Aproximei-me e, surpreendentemente, encontrei-o de posse a uma tradicional tabuada, daquelas que apresentam a imagem de uma professora direcionada a uma aluna, apontando com uma varinha, para um cálculo matemático, lembram?
Rubião era um aluno daqueles calados que ocupavam os últimos lugares da sala; bem mais velho que os demais; carrancudo; vestido de forma bem distinta dos outros colegas, pois lhe agradava usar camisas de mangas compridas; respondão, que só ele! Tinha características de um jovem bem interiorano e já havia ido para a ocorrência várias vezes. Dessa vez não era caso de ocorrência, pois tinha uma certa razão quando o interpelei: “Rubião, usando uma tabuada para resolver os cálculos, que é isso?” Respondeu: “E o que é que tem? A professora disse pra não usar calculadora ou celular, tô usando tabuada!”. De certa forma estava certo, mas... “Quando ela diz que não é pra usá-los, é porque quer que você faça os cálculos de cabeça, entendeu?” Inusitadamente, respondeu: “Oxente! e tem que matutar com a cabeça, é?
Teria ele razão? No mundo tecnológico e digital em que vivemos, há alguém que ainda “matuta com a cabeça”? Será que a maioria dos problemas que nos são acometidos hoje, não seriam por falta de “matutar com a cabeça? Sou de um tempo em que para fazer uma pesquisa escolar era necessário revirar a biblioteca e mergulhar nas mais tradicionais enciclopédias, estimulando assim, várias competências cognitivas. Para escrever algo, não contávamos com corretores automáticos, muito menos pesquisas instantâneas, Google, por exemplo. Tínhamos que ter um arsenal de dicionários, gramáticas, isso sem contar com o subsídio das muitas leituras clássicas, que são imprescindíveis para o acervo lexical. Tínhamos que “matutar com a cabeça”!
Os nossos alunos descobriram a tecnologia e isso seria excelente, se não negligenciassem a leitura. Deveriam, porém, usar aquela, sem omitir esta. A tecnologia veio para ficar, mas o cheiro do livro, a paz da biblioteca... são insubstituíveis! Observamos que o mau uso das tecnologias, das redes sociais, têm cambiado, inclusive, a estrutura do corpo humano. Este agora se divide em: cabeça, tronco, membro e celular. O aparelho já é uma extensão do corpo, pois é impossível viver sem ele! Caro Rubião! É necessário, urgentemente, voltar a “matutar com a cabeça”!
Atentemos agora para o lado negativo do “matutar com a cabeça”, pois, impressionantemente, nossos políticos contemporâneos, no afã de juntarem os seus bilhões de propinas, não têm seguido o exemplo das velhas raposas da política, “matutar com a cabeça”. A lava-jato está pegando a todos, mas não alcança os mais antigos. A tecnologia deixou os afoitos mais vulneráveis, visto que vez ou outra, vaza um áudio, um vídeo... não sabemos se por falta de instruções tecnológicas ou se é porque estão tentando encher a “medida do ter”, que, segundo o adágio popular, nunca enche. Os mais antigos, não! Estes sabiam “matutar com a cabeça” As marcas da sua corrupção se tornaram indeléveis, infelizmente. Neste contexto, definitivamente, meu caro Rubião, não é bom que eles aprendam a “matutar com a cabeça”. É preferível que eles se abestalhem e continuem escorregando nas suas próprias lamas.

Fortaleza, 04 de junho de 2017