Do
outro Lado
Deaf,
até aproximadamente sete anos de idade, vivia em total silêncio, em que a
possibilidade de comunicação era zero. Só conhecia a escuridão da noite e a luz
do dia, e não sabia distinguir o que era passado ou futuro. Vivia em seu
próprio isolamento e não entendia como as crianças da sua aldeia, da sua mesma
idade, dirigindo-se umas às outras, conseguiam realizar as mesma ações, ser
compreendidas. Brincavam nas matas; subiam nas árvores; criavam suas próprias
regras, nas brincadeiras de grupo; gozavam da liberdade, segurança e
tranquilidade daquele agradável reino. Para Deaf restava somente umas imagens
distantes em seu subconsciente e muitas vezes sonhava com um mundo em que todos
viviam harmoniosamente, e comunicavam-se através de sinais que envolviam a
configuração das mãos, pontos de articulação, movimentos, direções e expressões
facial/corporal. Tudo isso era muito nostálgico para ele, pois, mesmo sem ter
noções de conceitos de sentimentos, era como se sentisse saudades daquele
paraíso.
Naquele
lugar apresentado no inconsciente imaginário do garoto, todos possuíam visão,
olfato, paladar e tato. Não fazia falta um quinto sentido. Eram felizes e a
comunicação entre eles era perfeita, pois tinham rapidez e naturalidade na
exposição de seus sentimentos, desejos e necessidades. Tinham pensamento e
cognição estruturados e eram fluentes na interação social. Não sabia como, mas
Deaf anelava desesperadamente por essa dimensão onírica.
Um
imenso lago separava os dois reinos. Do outro lado viviam aqueles que, não
sabendo porquê, estavam marcados na memória do menino. Um povo diferente, de
linguagem distinta, mas sem nenhum problema de comunicação. Era, terminantemente,
proibida a entrada no lago, pois suas águas continham uma substância que
apagava completamente a memória de quem mergulhasse em suas águas e os
transportava para um lugar, até então, desconhecido.
Uma
daquelas crianças, com ímpeto de curiosidade, mergulhou naquele lago. A
consequência foi que, sem saber como, sem nenhuma lembrança e totalmente
destituído de audição; surgiu como um indigente naquela aldeia. Mesmo
vislumbrando alguns lampejos daquele saudoso mundo, era totalmente relegado de
tudo e de todos, restando-lhe somente a caridade das boas pessoas, que lhe
davam alimento, roupa e um cantinho para dormir. Vivia das vagas lembranças de
seu reino, sem saber, sequer, da sua existência.
Em
um belo dia de sol, passeando a esmo pelos campos daquela terra tão aprazível,
teve uma visão extraordinária! Observou um grupo de jovens que se comunicavam
através de sinais. Seriam eles habitantes daquele mundo que tão constantemente
surgia em seus sonhos? Eram alegres e não emitindo som algum, mostravam não
precisar de mais nada para serem iguais a qualquer outro. O garoto, que pensava
ser único no mundo, encontrou seus pares e não teve dúvida alguma da semelhança
que tinha com eles, exceto na utilização daquilo que não era simplesmente
mímica ou gestos soltos, mas uma língua que possibilitava seus usuários a
discutir filosofia ou política, a produzir poemas, a expressar sentimentos etc.
É
característico do homem, desbravar novos mundos, enfrentar novas aventuras,
abandonar o senso comum. Vez ou outra os habitantes do outro lado enfrentavam aquela
travessia no afã de novas descobertas e surgiam em um lugar onde eram
estimulados a ver o mundo de uma forma totalmente diferente da ótica de mundo
dos ouvintes. Deaf não sabia como seus novos colegas haviam resgatado aquela
forma de comunicação contemplada em seus sonhos e prófugas lembranças, mas
tinha a certeza de que era exatamente aquilo que lhe faltava. Agora poderia se
comunicar claramente; desenvolver-se social, emocional e intelectualmente;
interagir e compartilhar mensagens, ideias, emoções e sentimentos; e
influenciar, inclusive os aldeões ouvintes, a aprender o novo idioma.
Deaf
descobriu que o motivo da sua travessia era provar que os mundos não podem ser
divididos pela falta de audição, mas unidos pela possibilidade da comunicação,
da interação, da inclusão.
Texto
oferecido aos meus colegas surdos e aos incansáveis colegas intérpretes da
LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).
Jaguaribe 17 de junho de 2017
Francisco Fernandes
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