domingo, 4 de junho de 2017

Matutar com a cabeça

Matutar com a cabeça parece ser redundante, mas se analisarmos o contexto em que a expressão foi aplicada, veremos que faz um grande sentido.
Matutar significa refletir sobre alguma coisa de maneira demorada, pensar. Etimologicamente origina-se da palavra matuto, provavelmente referindo-se a sua sabedoria informal, conhecimento de mundo.
Nas avaliações do primeiro bimestre deste ano, fiquei na responsabilidade de aplicar as provas de matemática a uma determinada turma de alunos fora de faixa etária. A professora da referida disciplina determinou que os alunos não deveriam utilizar calculadora, inclusive dos celulares. Com um olhar perscrutador, característicos dos exímios aplicadores, observei um movimento curioso de um dos alunos avaliados. Aproximei-me e, surpreendentemente, encontrei-o de posse a uma tradicional tabuada, daquelas que apresentam a imagem de uma professora direcionada a uma aluna, apontando com uma varinha, para um cálculo matemático, lembram?
Rubião era um aluno daqueles calados que ocupavam os últimos lugares da sala; bem mais velho que os demais; carrancudo; vestido de forma bem distinta dos outros colegas, pois lhe agradava usar camisas de mangas compridas; respondão, que só ele! Tinha características de um jovem bem interiorano e já havia ido para a ocorrência várias vezes. Dessa vez não era caso de ocorrência, pois tinha uma certa razão quando o interpelei: “Rubião, usando uma tabuada para resolver os cálculos, que é isso?” Respondeu: “E o que é que tem? A professora disse pra não usar calculadora ou celular, tô usando tabuada!”. De certa forma estava certo, mas... “Quando ela diz que não é pra usá-los, é porque quer que você faça os cálculos de cabeça, entendeu?” Inusitadamente, respondeu: “Oxente! e tem que matutar com a cabeça, é?
Teria ele razão? No mundo tecnológico e digital em que vivemos, há alguém que ainda “matuta com a cabeça”? Será que a maioria dos problemas que nos são acometidos hoje, não seriam por falta de “matutar com a cabeça? Sou de um tempo em que para fazer uma pesquisa escolar era necessário revirar a biblioteca e mergulhar nas mais tradicionais enciclopédias, estimulando assim, várias competências cognitivas. Para escrever algo, não contávamos com corretores automáticos, muito menos pesquisas instantâneas, Google, por exemplo. Tínhamos que ter um arsenal de dicionários, gramáticas, isso sem contar com o subsídio das muitas leituras clássicas, que são imprescindíveis para o acervo lexical. Tínhamos que “matutar com a cabeça”!
Os nossos alunos descobriram a tecnologia e isso seria excelente, se não negligenciassem a leitura. Deveriam, porém, usar aquela, sem omitir esta. A tecnologia veio para ficar, mas o cheiro do livro, a paz da biblioteca... são insubstituíveis! Observamos que o mau uso das tecnologias, das redes sociais, têm cambiado, inclusive, a estrutura do corpo humano. Este agora se divide em: cabeça, tronco, membro e celular. O aparelho já é uma extensão do corpo, pois é impossível viver sem ele! Caro Rubião! É necessário, urgentemente, voltar a “matutar com a cabeça”!
Atentemos agora para o lado negativo do “matutar com a cabeça”, pois, impressionantemente, nossos políticos contemporâneos, no afã de juntarem os seus bilhões de propinas, não têm seguido o exemplo das velhas raposas da política, “matutar com a cabeça”. A lava-jato está pegando a todos, mas não alcança os mais antigos. A tecnologia deixou os afoitos mais vulneráveis, visto que vez ou outra, vaza um áudio, um vídeo... não sabemos se por falta de instruções tecnológicas ou se é porque estão tentando encher a “medida do ter”, que, segundo o adágio popular, nunca enche. Os mais antigos, não! Estes sabiam “matutar com a cabeça” As marcas da sua corrupção se tornaram indeléveis, infelizmente. Neste contexto, definitivamente, meu caro Rubião, não é bom que eles aprendam a “matutar com a cabeça”. É preferível que eles se abestalhem e continuem escorregando nas suas próprias lamas.

Fortaleza, 04 de junho de 2017

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Texto excelente que nos propicia uma leitura gostosa e até cômica ao relembrarmos as espertezas do protagonista.
    Parabéns!!!

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    1. Pois é, Rafaela! Protagonistas para crônicas é só o que temos, né? kkk

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